“Se a decisão for favorável aos ruralistas a gente vê que como um genocídio. A gente já lutava com os brancos. Os brancos têm arma de fogo, e hoje tem a arma que é a caneta. E eles vão nos matar dessa forma, à canetada. Não só dos Xokleng, mas de todos os territórios do Brasil”, opina Ana Uglô Patté, liderança Xokleng de José Boiteux (SC).
Ficção jurídica
Para Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e um dos advogados do povo Xokleng no processo, a expectativa é de que o STF cumpra “a teoria do indigenato”, prevista na Constituição de 1988, e que reconhece que o direito dos povos indígenas sobre seus territórios é originário e anterior à criação do Estado.
“Isso é uma falsidade, uma invenção, uma ficção jurídica. Nós acreditamos muito na coerência e coesão dos ministros da suprema corte de serem guardiães da nossa constituição federal”, afirma Modesto.
Na avaliação do jurista, a tese do “marco temporal” legitima as violações que os povos foram submetidos até 1988, especialmente durante a ditadura militar.
“Há registros históricos de extrema violência em casos dos indígenas que tentaram reivindicar ou voltar para suas terras de onde foram expulsos. A ação judicial existente naquela data que compõe a tese é praticamente impossível porque os povos indígenas até 1988 foram tutelados, o que torna ela de fato inconstitucional“, define.
Inúmeros exemplos da violência citada pelo advogado do povo Xokleng estão documentados no chamado “Relatório Figueiredo”, que apurou matanças de comunidades indígenas por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
O documento elaborado em 1967 denuncia caçadas de indígenas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, propagação proposital de varíola em povos isolados e doações de açúcar com veneno.
Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, inoculações propositais de varíola e doações de açúcar misturado a estricnina. Após ficar desaparecido por 45 anos, o relatório está disponível no site do MPF.
“Gente do sol”
A terra que está em jogo, situada às margens do rio Itajaí do Norte, em Santa Catarina, foi reconhecida como território tradicional pelo Ministério da Justiça em 2003 – com base em estudos antropológicos da Funai – e é parte do território Ibirama-laklanõ, reduzido em 63% pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) ao longo do século 20.
Não existe “marco temporal” na constituição federal, existem os direitos tradicionais dos povos indígenas.
Além do povo Xokleng – que se autodenominam “Laklanõ” ou “gente do sol” –, as etnias Guarani e Kaingang, também residem na Ibirama-La Klaño, onde disputam espaço com madeireiros e fumicultores.
“A nossa história de luta, o nosso contato foi dia 22 de setembro de 1914 aqui no Vale do Itajaí, rodeados por quatro cidades de europeus, italianos, alemães, poloneses. O próprio Estado pagava a gente para matar os povos indígenas. Em 1904, houve uma matança de mais de 200 indígenas. Não existe “marco temporal” na constituição federal, existem os direitos tradicionais dos povos indígenas”, relembra Brasílio Priprá, outra liderança do povo Xokleng, admitido como parte do processo no Supremo.
Terra alagada
Na década de 1960, com a construção da Barragem do Norte para conter as enchentes na região do Vale do Itajaí, 95% da área cultivável dos Xokleng foi inundada, incluindo as aldeias. A obra concluída em 1992 foi autorizada pelo SPI. Hoje a falta da soberania alimentar tem tido efeitos no aumento de casos da covid-19, com mais de 200 casos e três mortes entre a etnia, segundo os indígenas.
“Mais de 700 hectares ficaram alagados, ou seja, todo o território próprio para o plantio e cultivo, e fértil ficou embaixo d´água. Muita gente ficou desempregada”, relata Ana Uglô Patté.
“Muitos indígenas trabalham foram hoje para se sustentar, porque a gente não consegue mais ter o sustento dentro das nossas próprias comunidades, a gente não tem mais a soberania alimentar que nós tínhamos”, completa.