DESIGUALDADE NA DISTRIBUIÇÃO DA TERRA URBANA NO SUL GLOBAL: Entrevista com Auta Azevedo sobre o caso da comunidade do Coque em Recife | Land Portal

Moradias na comunidade do Coque, Recife, Brasil. Foto: Julia Oliveira - Revelar.si, coletivo de fotógrafas do Coque. 

 

Para refletir sobre as diferentes desigualdades nos espaços urbanos, a Land Portal Foundation inicia uma série de entrevistas realizadas com acadêmicos/acadêmicas e defensores/defensoras de direitos humanos e territoriais. As entrevistas oferecem retratos de como esta distribuição desigual impacta as populações mais vulneráveis durante a pandemia do COVID-19. 
 
A entrevistada de hoje é a pesquisadora brasileira Auta Azevedo, doutoranda em Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. 
 
Foto: Amanda Martinez Elvir 
Foto aérea da comunidade do Coque, Recife, Brasil. Fonte: Amanda Martínez Elvir.
 
AM - Nos países do Sul Global, historicamente o acesso formal à propriedade e a posse de terra estavam mais frequentemente relacionados ao acesso a poder e privilégios. Existe, na sua cidade, uma clara divisão da terra em função da raça/etnia e classe social? O que se observa em relação a isso? Como esta divisão foi estruturada historicamente e como ela é hoje? 
 
AA - Recife está entre as cinco cidades brasileiras que possuem a maior concentração de favelas. De acordo com os dados do IBGE, em toda a Região Metropolitana do Recife (RMR) somos 3.676.067 habitantes. Desse total, 852.700 pessoas (23,2% da população total) vivem em domicílios localizados em aglomerados subnormais, é nosso caso, moradores do Coque. O Coque, também conhecido como Joana Bezerra, conta com 12.755 habitantes, de acordo com dados oficiais e possui o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo da Região Metropolitana do Recife . 
 
De acordo com uma pesquisa realizada em 2005 pelo professor Alexandre Freitas, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), o processo de ocupação do Coque, começou há quase 100 anos sobre um antigo aterro de lixo existente no manguezal da ilha de Joana Bezerra. A maioria dos moradores do Coque foi constituída por negros e negras descendentes de escravos e famílias que migraram do Agreste, Sertão e da Zona da Mata do Estado. Para fugir da própria divisão desigual de terras no interior, ou da escassez de outras formas de ocupação, as pessoas se deslocaram para as cidades, e acabaram tendo que enfrentar o mesmo problema, mas agora agravado pela precarização dos espaços urbanos. Assim foi se formando a cidade, com os descendentes dos negros e negras escravizados durante a colonização construindo as favelas, os descendentes dos senhores de engenho construindo os bairros nobres.  
 
Recife é uma cidade dividida. Apesar das pontes, viadutos e outras estruturas que unem um lugar a outro, a cara e cor dos bairros mostra bem essa divisão. Muita gente preferiria usar o marcador classe. Eu prefiro usar raça, porque é nítida a divisão racial que compõe a cidade, os bairros tem predominância de cor. Embora seja uma mulher negra de pele clara, tenho consciência das minhas origens e como elas definem os espaços em que circulo. 
 
Eu comecei a repensar muito essa divisão racial do Recife quando estive na cidade do Cabo, na África do Sul em 2010, participando de um intercâmbio entre jovens moradores de periferias urbanas do Brasil e África do Sul. A divisão entre os bairros na cidade do Cabo, 16 anos após o fim do apartheid, foi extremamente nítida para nós, você tem os bairros brancos, limpos, urbanizados, com todas as condições de moradia e mobilidade, e você tem as townships (favelas), cujas condições de moradia são as mais precárias e chocantes. Lá pude conhecer Kayelitsha, a maior favela do país e terceira maior do continente africano. Aqui em Recife e no Brasil, nossos olhos se acostumaram com essa divisão, e não dizemos que temos bairros brancos e pretos, mas bairros ricos e pobres. 
 
Foto: Julia Oliveira - Revelar.si
Atividades no espaço público da comunidade do Coque. Foto: Julia Oliveira - Revelar.si, coletivo de fotógrafas do Coque. 
 
AM - Segundo dados da ONU-Habitat, a população que vive em favelas no mundo cresce em torno de 25 milhões de pessoas por ano, registrando as maiores taxas de urbanização nos países mais pobres. Os projetos urbanos têm contribuído para expulsão e deslocamento de populações que vivem em pobreza na sua cidade? Como esses tipos de despejo transformaram os padrões de distribuição de terras urbanas em sua cidade na última década? 
 
AA - O Coque tem uma longa história de luta pela permanência no território em detrimento de obras urbanas que insistem na remoção de diversas áreas da comunidade. A especulação imobiliária e os conflitos que acontecem aqui são semelhantes com os que acontecem em outras favelas de Recife, principalmente aquelas que ficam mais próximas do centro. É o caso das comunidade de Caranguejo Tabaiares, Coelhos e Pilar. O mesmo acontece ou já aconteceu em favelas como Bode e Brasília Teimosa que ficam ao redor de bairros nobres como Boa Viagem e Pina. Há um ano atrás, em Caranguejo, a Prefeitura tinha a intenção de remover pessoas de uma parte da comunidade para a realização de uma obra de urbanização do canal. Mas essa remoção previa a retirada de uma quantidade de casas desnecessárias para a obra. Uma parte dos moradores se mobilizou fortemente, realizou campanha, buscou apoio de ONGs, grupos e organizações populares e conseguiu a revogação do decreto de desapropriação, a prefeitura recuou do decreto. Era mesmo um projeto de “higienização” da cidade. Toda essa mobilização gerou o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste.
 
Na mesma linha de “higienização”, no ano de 2013, havia um projeto de desapropriação de mais de 50 famílias do Coque. A justificativa era a necessidade de ampliação de uma pista para melhorar o acesso ao terminal integrado de passageiros (TI Joana Bezerra). Parte dos moradores se mobilizou, e com apoio de organizações populares, de organizações sociais da própria comunidade nasceu o Coque (R)existe. Houve uma disputa forte na comunidade, porque alguns líderes comunitários mais antigos ficaram a favor das remoções, foram cooptadas pelo Governo do Estado e queriam falar em nome da comunidade. Mas a mobilização puxada pelo movimento foi mais forte. Há alguns anos atrás, um terreno da comunidade foi simplesmente doado para a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Isso não poderia acontecer, uma vez que o Coque é área Zeis. Isso foi bem interessante, porque foram aparecendo buracos no muro construído ao redor do terreno após a suposta doação. A cada dia, mais buracos apareciam. O Coque (R)existe novamente se mobilizou e o povo derrubou o muro. A OAB “abriu mão” do terreno. 
 
Durante as obras estruturais que antecederam a realização da Copa do Mundo em 2014, foram realizadas várias remoções em favelas de cidades da RMR. O Coque, mais uma vez na cena, foi uma delas. Um dos primeiros territórios ocupados pelos primeiros moradores do Coque, o Sítio do Cajueiro, foi todo removido com a justificativa, novamente, de ampliação do TI Joana Bezerra. Dezenas de famílias foram retiradas, árvores centenárias derrubadas e aves e saguis foram mortos. O terreno, anos depois da Copa da Fifa, está abandonado. 
 
Foto: Julia Oliveira - Revelar.si
Praça pública dentro da comunidade do Coque. Foto: Revelar.si, coletivo de fotógrafas do Coque. 
 
Foto: Layane Santos - Revelar.si
Comunidade do Coque. Foto: Layane Santos - Revelar.si, coletivo de fotógrafas do Coque. 
 

AM - O consumo de terra em países com economias em desenvolvimento no Sul Global aumentou na última década. Você já observou esse fenômeno na distribuição do espaço urbano em seu país/cidade? Existe um novo padrão para a distribuição de terras urbanas que não apenas privilegia a elite local, mas também tem implicações para o acesso de terras por pessoas de outros países (ricos ou pobres)? 

AA - Com a crise humanitária o Brasil também recebeu refugiados de vários países. Mais recentemente, refugiados venezuelanos compõem a paisagem do Recife. Numa cidade, onde a presença de pessoas em situação de rua está naturalizada, os rostos com fortes traços indígenas, destoam dos demais.
 
Também tem os vendedores de bijuterias, vindos de países africanos, em suas bancas no centro do Recife.
 
Não existem, que eu conheça, políticas de acolhimento e integração desses moradores.
 
Foto: Amanda Martinez Elvir

Comunidade do Coque, Recife. Foto: Revelar.si - Coletivo de Fotógrafas do Coque.

AM - O direito à cidade, e o direito à posse formal da terra são essenciais para o desenvolvimento econômico, social e político das pessoas que vivem em situações vulneráveis, especialmente as mulheres. Segundo a GLTN, a posse legal de terra atinge apenas 30% das áreas habitadas nos países em desenvolvimento. Desse total, apenas 3% das mulheres possuem documentos de registro de propriedades. Existem políticas urbanas específicas em seu país que garantam o direito à posse de terra para as mulheres, especialmente as que vivem em assentamentos informais ou favelas? 
 
AA - Sim, uma das maiores conquistas na luta pelo reconhecimento da terra urbana habitada por populações que vivem em pobreza, como o caso do Coque, é o ZEIS, (Zonas Especiais de Interesse Social), instituídas pela Lei de Uso e Ocupação do Solo no Recife. Apesar de o Coque ser identificado como um lugar violento até hoje na cidade de Recife, quem está lá não ignora seu passado de luta e as mobilizações sociais geradas, principalmente a partir da década de 1980. Ao mesmo tempo em que acontecia a luta pelo direito à posse da terra, a comunidade também lutou contra o processo de venda da Ilha Joana Bezerra para um grupo empresarial que pretendia construir um shopping center na área. O projeto não foi bem sucedido e, finalmente, em 1983, foram criadas as ZEIS. Esta legislação contribuiu para definir, reconhecer e proteger da especulação imobiliária, as áreas de habitação de baixa-renda que se ergueram espontaneamente onde fosse possível um processo de urbanização e regularização. O Coque é uma Zeis. Mas mesmo com o Plano de Regulamentação das Zeis, os moradores do Coque não possuem o documento de posse da terra.
 
O Programa Minha Casa Minha Vida, criado pelo Governo Federal em 2009 pelo Governo Lula, em uma de suas modalidades, destinada a construção de casas em habitacionais em áreas populares, tinha como prioridade beneficiar mulheres. Nos casos de famílias com homem e mulher beneficiários, a propriedade da habitação era da mulher. O atual governo federal não acabou oficialmente com o Programa, mas não existem mais recursos disponíveis nem a liberação de novos projetos. 
 
Comecei a entender a moradia como um direito humano quando trabalhei na Habitat para a Humanidade Brasil, cujo escritório nacional fica em Recife. Em geral, quando se fala em direitos no Brasil, automaticamente citamos educação, saúde, segurança. Mas ter um lugar digno para morar é essencial para a vida das pessoas. Passei toda a minha infância e boa parte da adolescência me mudando porque não tínhamos casa própria. Meu pai era operário de fábrica e optou por pagar escola privada para mim e minha irmã, ao invés de adquirir uma casa própria. Era uma coisa ou outra. Ao se aposentar, ele conseguiu com o FGTS adquirir um imóvel tão sonhado. Mas não é todo mundo da classe trabalhadora que consegue concretizar esse direito. Fui morar no Coque quando casei, porque é o lugar onde meu companheiro nasceu e foi criado. Foi morando no Coque e trabalhando na Habitat que comecei a refletir sobre o enorme déficit habitacional do Brasil e de Recife. Foi aí que entendi que não ter casa própria, assim como para meu pai, um operário negro que imigrou do interior do estado para a cidade aos 18 anos de idade em busca de trabalho, não é um opção ou falta de organização das famílias, mas uma condição imposta pela ausência de políticas de moradia. A história da minha família e de tantas outras são exemplos que ilustram como o racismo estrutural foi organizando as cidades, acesso ao trabalho, bens e serviços de saúde, educação, cultura, moradia. 
 
Foto: Brenda Emillainy - Revelar.si
Crianças na Maré, comunidade do Coque. Foto: Brenda Emillainy - Revelar.si, coletivo de fotógrafas do Coque. 
 
AM - A desigualdade na distribuição da terra urbana em metrópoles do Sul global cria formas específicas de organizar o espaço e as moradias em áreas de pobreza, densamente povoadas. Como se vivencia a passagem do COVID-19 nestes espaços na sua cidade ou na sua comunidade?
 
AA - O que dá pra perceber no Brasil todo, acompanhando as notícias pela TV e internet e a interação dos efeitos da Pandemia com a desigualdade racial no Brasil, é que já era estrutural aqui.
 
Historicamente, não é nenhuma novidade, os corpos que o Estado escolhe cuidar menos, de forma precária e deixar morrer como consequência, têm raça e classe social. A necropolítica tem na desigualdade ao acesso a saúde, a sua concretização. O palco dessa concretização é as grandes cidades. O acesso a serviços públicos, como a educação, saúde e a proteção social está distribuída de modo desigual (tanto em quantidade, quanto em qualidade) para brancos, pardos e pretos, em detrimento dos últimos. O racismo sempre dificultou o acesso da população negra à saúde, não seria diferente nesse cenário construído pelo corona vírus.  Eu acho muito simbólico que a primeira morte oficial por covid-19 registrada no Brasil tenha sido de uma trabalhadora doméstica que contraiu a doença com sua empregadora que voltou de férias da Itália.
 
É muito difícil manter isolamento social dentro de uma casa de 40 m² onde moram sete pessoas. Como manter isolamento quando sua vida é ganha diariamente na rua? No Coque existem pessoas que trabalham de dia para comer de noite. Uma boa parte conseguiu acessar o auxílio emergência do governo federal, muitas não. A solução tem sido o recebimento de cestas básicas que tem chegado na comunidade através das organizações sociais e grupos organizados existentes na comunidade. Mas até pra isso, pra receber uma cesta a pessoa vai precisar sair de casa. Não tem sido possível esse isolamento radical. 
 
A precariedade da vida de quem vive na favela aumentou e foi escancarada com a crise gerada pelo corona vírus. Aliás, a crise que já existia se aprofundou, trazendo como consequência mais mortes, fragilizando ainda mais o cotidiano da população negra e pobre e não permitindo mais se negue a combinação entre a extrema desigualdade e o racismo estrutural que definiram as bases da construção das cidades no Brasil. 
 
Auta Azevedo
Pedagoga, doutoranda do Programe de Pós-Graduação em Antropologia. Integrante do MABI (Movimento Arrebentando Barreiras Invisíveis do Coque) e Revelar.si (Coletivo de fotógrafas do Coque), educadora popular feminista.