DESIGUALDADE NA DISTRIBUIÇÃO DA TERRA URBANA NO SUL GLOBAL: Entrevista com Fabrício Martins sobre o caso de Manaus | Land Portal

Foto: Ronald Woan/Flickr

Para refletir sobre as diferentes desigualdades nos espaços urbanos, a Land Portal Foundation inicia uma série de entrevistas realizadas com acadêmicos/acadêmicas e defensores/defensoras de direitos humanos e territoriais. As entrevistas oferecem retratos de como esta distribuição desigual impacta as populações mais vulneráveis durante a pandemia do COVID-19. 

O entrevistado de hoje é o pesquisador brasileiro Fabrício Martins, Formado em Direito na Universidade Federal do Amazonas (2009).

AM -Nos países do Sul Global, historicamente o acesso formal à propriedade e a posse de terra estavam mais frequentemente relacionados ao acesso ao poder e privilégios. Existe, na sua cidade, uma clara divisão da terra em função da raça/etnia e classe social? Como esta divisão foi estruturada historicamente e como ela é hoje?

FM - Claramente! Há dois fatores ligados à propriedade da terra que são reveladores dessas divisões em Manaus: o acesso ao registro de propriedade (propriedade formal da terra) e o acesso à terra urbanizada. Manaus possui um padrão de expansão e planejamento territorial profundamente impactado por seus ciclos econômicos. 

Pode-se dizer que o “ciclo da borracha” (1880-1912) colocou Manaus no mapa. Desta fase, destaca-se a urbanização do centro da cidade na forma de “planta regular”, em completa desconsideração à natureza. O espírito da época era domar a Amazônia à imagem da “civilização europeia”. Migrantes nordestinos fugidos da seca foram incentivados pelo governo a servirem de mão-de-obra para extração da borracha, um trabalho extenuante e nas piores condições, porém foi da miscigenação entre os indígenas, majoritários na região à época, e os nordestinos que fez surgir o principal grupo étnico regional da atualidade, o “caboclo”. Para empreender na cidade, vieram imigrantes de toda a parte, sobretudo árabes libaneses e judeus marroquinos, japoneses, portugueses e espanhóis. A miscigenação entre esses imigrantes e a população local majoritariamente cabocla corresponde em boa parte à classe média e à elite econômica e social de Manaus nos dias de hoje.
 
Nos tempos da estagnação econômica (1912-1967), a cidade pouco se expandiu. Se não havia pressão econômica, não havia valor monetário na terra. Nesse tempo, devido ao costume ribeirinho de morar sobre as águas, cresce às margens do Rio Negro um grande conjunto de palafitas e casas flutuantes, conhecida como “cidade flutuante”. Em seu auge chegou a ter 11 mil moradores e cerca de 1.900 habitações . O fim da cidade flutuante em 1965 deu origem a um dos primeiros conjuntos habitacionais na cidade. Com a Zona Franca de Manaus (1967), a cidade experimenta um crescimento populacional sem precedentes. De cerca de 300 mil habitantes em 1970, hoje estima-se que sejam 2 milhões e 200 mil. 
 
As margens dos igarapés foram ocupadas por uma população cabocla migrante do interior e que possuía familiaridade na forma de morar ribeirinha. Ademais, as margens do rio não eram propriedade de ninguém, de forma que não havia impeditivo para os assentamentos. Outra forma eram as chamadas “invasões”. Grupos de operários e subempregados reuniam-se e planejavam a posse de terras não ocupadas, usualmente em terrenos públicos ou de grandes propriedades privadas inexploradas. A urbanização era precária, a distribuição de terrenos era pactuada entre os ocupantes e não se observa qualquer tipo de convenção urbanística. Com o tempo o poder público dotava as comunidades com infraestrutura social básica, porém a qualidade desses serviços e a ausência de esgotamento sanitário são uma das características desse tipo de ocupação até hoje. Um equivalente às “invasões”, porém com fachada imobiliária, eram os “loteamentos”. Formados em terrenos urbanos inexplorados com titulação duvidosa (“grileiros”), esses loteamentos, muito embora carecessem de titulação definitiva e de infraestrutura social básica, eram comercializados a um público de classe média. Novamente, com o tempo e a consolidação de muitos desses loteamentos, a prefeitura fornecia a infraestrutura social básica, muitas vezes negadas pelos incorporadores. 
 
Por fim, a menor porção da produção espacial da cidade foi a derivada do mercado privado formal e da associação entre Poder Público e mercado, por meio do BNH. São essencialmente direcionados às classes médias e altas, que correspondem à parcela de moradia produzida que segue mais fielmente as regras urbanísticas e tem acesso à melhor oferta de serviços urbanos.
 

 

AM - Segundo dados da ONU-Habitat, a população que vive em favelas no mundo cresce em torno de 25 milhões de pessoas por ano, registrando as maiores taxas de urbanização nos países mais pobres. Os projetos urbanos têm contribuído para expulsão e deslocamento de populações que vivem em pobreza na sua cidade? Como esses tipos de despejo transformaram os padrões de distribuição de terras urbanas em sua cidade na última década?

FM - Dentre os projetos urbanos de maior escala e que causaram uma boa dose de deslocamentos estão o Prosamim (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus) , de responsabilidade do governo estadual, e o Prourb (Programa de Desenvolvimento Urbano e Inclusão Socioambiental de Manaus), de responsabilidade do governo municipal. Em resumos, esses programas buscam retirar moradias construídas às margens dos igarapés, em terrenos alagadiços ou encostas e que não possuem condições de habitabilidade, além de dotar as imediações de saneamento básico. Está em seus objetivos também a reconversão das margens de igarapés em novos parques e/ou vias urbanas para automóveis. Apesar de enumerado como desafio desses programas o reassentamento em locais próximos do local de vivência, não raro é ofertado como solução mais prática a realocação dos moradores em alguns dos novos conjuntos habitacionais, construídos nos limites da cidade (Conjunto Cidadão, Residencial Viver Melhor, etc.).

Esses programas, em especial o Prosamim, foram responsáveis por um massivo deslocamento populacional do centro da cidade (local de melhor oferta de serviços e empregos) para longínquos e desabastecidos novos conjuntos residenciais, de qualidade construtiva bem duvidosa e flagrantes déficits urbanísticos (ausência de mercados, feiras e parques, transporte público deficiente, etc.). Outro paradoxo revela-se na proposta “ambiental”: o projeto arquitetônico e urbanístico empregado efetivamente aniquila os últimos vestígios de geografia natural da área, empregando técnicas de terraplanagem, contenção artificial das margens dos rios, plantação extensiva de gramados – escolhas inconsistentes com o clima e a vegetação amazônica.
 
AM - O consumo de terra em países com economias em desenvolvimento no Sul Global aumentou na última década. Você já observou esse fenômeno na distribuição do espaço urbano em seu país/cidade? Existe um novo padrão para a distribuição de terras urbanas que não apenas privilegia a elite local, mas também tem implicações nas terras acessadas por pessoas de outros países (ricos ou pobres)?

 

 

FM - Manaus é a segunda capital no Brasil com maior percentual de “aglomerados subnormais”, segundo o IBGE. Isso corresponde a 53,3% de seus domicílios. Nas últimas décadas, o modelo de condomínios fechados de residências ou de torres residenciais ajudou a embaralhar ainda mais o tecido urbano. Essa forma de construir “democratizou-se”, de forma que atende às elites, mas também já foi adaptado para empreendimentos direcionados à classe média baixa, pelo Minha Casa, Minha Vida. Quem perde a olhos vistos é a cidade, que vê reduzido os espaços de circulação e convivência sem muros.

Há também as duas ondas migratórias recentes: de refugiados haitianos a partir de 2010 e, em maior número, de refugiados venezuelanos a partir de 2017. A cidade convive com tendas improvisadas para abrigo emergencial a essa população, enquanto não há perspectiva de apaziguamento social na Venezuela ou melhora nas condições de absorção econômica no Brasil desse contingente.
 

 

AM - O direito a cidade, e o direito a posse formal da terra são essenciais para o desenvolvimento econômico, social e político daspessoas que vivem em situações vulneráveis, especialmente as mulheres. Segundo a GLTN, a posse legal de terra atinge apenas 30% das áreas habitadas nos países em desenvolvimento. Desse total, apenas 3% das mulheres possuem documentos de registro de propriedades. Existem políticas urbanas específicas em seu país que garantam o direito à posse de terra para as mulheres, especialmente as que vivem em assentamentos informais ou favelas?

FM - Como havia dito lá atrás, sem o acesso ao registro formal da propriedade, os privilégios advindos da financerização da posse da terra, eram negados. Há a posse, porém não há acesso a empréstimos ou hipotecas, de forma que o mercado imobiliário manauara é profundamente afetado pelo “subdesenvolvimento” de sua estrutura fundiária. As administrações apostam há algumas décadas em extensos processos de regularização fundiária, sempre apostando na fórmula do título individual de propriedade. Uma das poucas restrições é de caráter temporal: o recebedor não pode negociar a propriedade por 10 anos.

A mulher passou recentemente a ser favorecida no processo de regularização fundiária. Nacionalmente, a Lei nº 13465/2017 coloca a mulher em posição preferencial na concessão de direitos reais. As residências pertencentes ao Programa federal Minha Casa Minha Vida, pelo Governo Lula, são preferencialmente inscritas no nome da mulher, mesmo em famílias com homem e mulher beneficiários.
 

 

AM - A desigualdade na distribuição da terra urbana em metrópoles do sul global cria formas específicas na organização do espaço e moradias em áreas de pobreza densamente povoadas. Como se vivencia a passagem do COVID-19 nestes espaços na sua cidade ou na sua comunidade? 

FM - Terrível! O governo federal está fazendo pouco para controlar a pandemia e, quando faz, é para atrapalhar os outros entes públicos e da sociedade. Manaus é o local com maior número de infecções e de mortes por habitante no Brasil. O sistema de saúde colapsou em abril e o número de sepultamentos diários – termômetro mais fiel da extensão da pandemia – quase triplicou. O normal da cidade são entre 25 a 30 sepultamentos diários. Esse número chegou a 140 em 14/04. Até o dia 26/05/2020, oficialmente há 1.248 óbitos confirmados. Porém, como há grave subnotificação, especula-se que haja até o triplo de mortes.

A preocupação com a transmissão desenfreada do vírus é constante, porque Manaus possui baixos índices de saneamento básico. Apenas 5% das residências são dotadas de esgotamento sanitário e, na periferia, o fornecimento de água é inconstante. A paralização parcial da economia e os despedimentos em massa no setor de serviços fazem com que o resgate financeiro pago pelo governo federal seja insuficiente e ineficiente. Ou seja, o desespero econômico, a baixa qualidade do serviço de saúde, o baixo índice de saneamento urbano, o número excessivo de aglomerados subnormais e uma atitude desafiante por parte da população às normas sanitárias podem explicar o quadro grave por que passamos.
 
Fabrício Martins
 
Atualmente, é Consultor Legislativo em Políticas Públicas na Consultoria Legislativa da Alepe e, paralelamente, é membro da direção colegiada da CUT/PE e do Sindilegis/PE. Possui graduação em Direito (UFAM, 2009), especialização em Direito Civil pela Universidade Anhanguera - Uniderp (2011) e mestrado em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2019).

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