DESIGUALDADE NA DISTRIBUIÇÃO DA TERRA URBANA NO SUL GLOBAL: Entrevista com Henrique Norte sobre o caso de Maputo | Land Portal
Foto: Nuno Ibra Remane/Flickr
 
A falta de acesso à posse de terra urbana é uma das possíveis causas da expansão e formação das chamadas favelas, presentes nas grandes metrópoles do Sul Global. As favelas geralmente estão localizadas em zonas de risco, tais como em morros ou nas beiras de canais que colocam em perigo permanente a saúde pública de quem nelas habita. 
 
Estes espaços têm sido ocupados principalmente por populações pobres, muitas vezes em razão da migração do campo para a cidade. São várias as desigualdades entre os que vivem nas favelas e os que vivem na cidade formal, a começar pela taxa de ocupação do território.
 
Fotografias aéreas recentes de Nairóbi, Kenya, por exemplo, revelaram que mais da metade da população vive em apenas 18% do território urbano. Em Daca, Bangladesh, estima-se que 70% da população esteja concentrada em apenas 20% da cidade. 
 
Quem vive na cidade formal argumenta que essas populações escolhem esses tipos de territórios para se estabelecer, colocando-se em risco. Isso coloca a responsabilidade pela distribuição desigual da terra urbana nas populações mais pobres, sem refletir sobre a origem desse contraste.
 
Para refletir sobre as diferentes desigualdades nos espaços urbanos, a Land Portal Foundation inicia uma série de entrevistas realizadas com acadêmicos/acadêmicas e defensores/defensoras de direitos humanos e territoriais. As entrevistas oferecem retratos de como esta distribuição desigual impacta as populações mais vulneráveis durante a pandemia do COVID-19. 
 
O entrevistado de hoje é o pesquisador moçambicano Henrique Norte, doutorando em Desenvolvimento Urbano na Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. 
 
Google Earth
Foto aérea de Polana Caniço no ano 2000, Maputo. Fonte: Google Earth.
 
AM - Nos países do Sul Global, historicamente o acesso formal à propriedade e a posse de terra estavam mais frequentemente relacionados ao acesso a poder e privilégios. Existe, na sua cidade, uma clara divisão da terra em função da raça/etnia e classe social? O que se observa em relação a isso? Como esta divisão foi estruturada historicamente e como ela é hoje? 
 
HN - Historicamente, as cidades de Moçambique surgiram a partir de uma urbanização ocidental - a construção da parte formal da cidade, com indústrias e serviços básicos para acomodar o status quo do branco. 
 
Nós éramos separados por classe. Havia a classe “civilizada” que eram os brancos e os negros que estudavam, e logo os indígenas. A partir da década de 1950, e com maior incidência na década de 1960, começa a construção das cidades de Moçambique, porque Portugal já tinha a pretensão de se fixar e isso servia para o projeto do império português. Aí começa o processo de urbanização. 
 
Quem vivia nesse centro urbano era a população branca e alguns mulatos (mistura de negros e brancos) e “assimilados”, ou seja, negros que estudavam e aprendiam o português e ganhavam o direito de viver nas zonas urbanas embora nunca chegavam a ser considerados cidadãos.
 
O negro indígena começa a sair do campo para a cidade. E lá, em torno da cidade, em áreas que ainda eram impróprias para habitação, eles foram construindo suas casas, suas moradias precárias, com pau, caniço, bamboo e argila.
 
Quem migrava de uma cidadezinha do interior, hospedava-se num bairro, e todos os que vinham, iam para aquele bairro. Aí ficavam muitos. Um grupo étnico num canto, outro em outro canto, etc. Mas esse movimento do campo para a cidade à procura de melhores condições de vida, à procura de emprego fez com que surgisse uma outra cidade, que é a cidade de caniço. Caniço é um material que vem da natureza, que as pessoas usam para fazer casas. Ele cresce  ao longo do mar. Ele é uma espécie de bamboo, mas pequeno. Ele é muito perecível. Aí, deu-se o nome de cidades de caniço. Então, em torno da cidade de cimento, da cidade colonial, do branco, tem a cidade de caniço que é onde o negro vivia. Esses negros foram tolerados porque o Português precisava da mão de obra deles, barata, para sustentar as indústrias e os trabalhos domésticos. Então foram perdoados, foram tolerados (essa é a palavra certa), e tem um pesquisador que fala sobre isso. 

 

Com a independência em 1986, foi feita uma reforma administrativa para considerar esses espaços urbanos em torno da cidade formal, que passaram a ser bairros. Então houve uma junção dos bairros com a cidade formal, que passaram a ser limites administrativos que hoje chamamos de municípios. 
 
Mas de 1986 até hoje, quando entramos no capitalismo, nada foi feito. A periferia continua a ser um espaço segregado, mesmo estando em transformação como consequência da urbanização e ocupação dos espaços por pessoas com algum capital. Muita gente já saiu da cidade formal para o antigo caniço. Esse novo perfil de cidadãos, moradores da periferia, estimulou o aparecimento de alguns serviços básicos, embora insuficientes. Talvez 3% ou 4% da população tem acesso a água encanada e corrente elétrica.
 
Quando você questiona se existe na minha cidade uma clara divisão da terra em função da raça, Sim, isso existe. Quem têm poder econômico hoje é quem tem terrenos. Quando formos ver a distribuição de terrenos, quando é feito pelo município, é realizado em função de um grupo social ou de um grupo partidário. Isso vai criar o que nós costumamos chamar de armadilha urbana. Não temos fácil mobilidade nos bairros periféricos. Quem mora no interior de um bairro pobre tem dificuldade de acesso a sua moradia ou de lá para a rua principal.
 
O cimento hoje representa a parte formal. Segundo dados do censo de 1997, 4% da população vivia no cimento. Isso quer dizer que cerca de 96% vivia na periferia e em péssimas condições, porque essa periferia não tem serviços básicos nem infraestrutura. Quando eu saio da periferia para a parte urbanizada, nós dizemos, ‘eu vou à cidade’, que é onde tem prédio.
 
Muita gente saiu da zona rural para a zona urbana fugindo da guerra civil de 1976-1992. O governo pensava que muita gente ia voltar para o campo com o final da guerra, mas aconteceu o contrário. Muita gente continuou com o processo de migração campo-cidade, pois os distritos (do interior) foram assolados pela Guerra, sem poder garantir sustento à população.
 
Isso contribuiu para a desigualdade social, porque não há distribuição equitativa da terra e as pessoas se abrigam com amigos, em espaços pequenos. A população pobre não têm acesso à informação ou a espaços públicos, para reclamar seu direito à cidade.  
 
O que nós encontramos na periferia não é uma divisão, é uma ocupação. Em 1998, começamos a ter municípios. A partir do ano 2000 começa a haver uma tendência de distribuir terras, mas essa distribuição é mergulhada no sistema clientelista. Nosso estado é neo-patrimonial e fomenta muito o clientelismo. Essa distribuição existe em função da classe social. Alguns de nós, jovens, conseguimos  adiquirir terras com os “proprietários”, famílias que ocupavam a terra desde os tempo da colonização. E apresentamos essas terras ao município para formalização como uma terra ou lote de herança. É um lote adquirido de forma clandestina, pois a terra é propriedade do Estado. 
 
O município não organiza o espaço e isso vai fomentando um bairro “armadilhado”. Em muitos bairros periféricos há uma única entrada e saída. Não há plano urbanístico, por falta de vontade política e visão de cidade da classe dirigente.
 
 
AM - Segundo dados da ONU-Habitat, a população que vive em favelas no mundo cresce em torno de 25 milhões de pessoas por ano, registrando as maiores taxas de urbanização nos países mais pobres. Os projetos urbanos têm contribuído para expulsão e deslocamento de populações que vivem em pobreza na sua cidade? Como esses tipos de despejo transformaram os padrões de distribuição de terras urbanas em sua cidade na última década? 
 
HN - Em 1998 surge o primeiro governo municipal, em 2004 o segundo. Na cidade de Nampula em particular, o segundo governo notabilizou-se com grande venda de terra urbana. O perfeito cedeu muitos espaços urbanos para condomínios. Inclusive, alienou ou concessionou espaços verdes a empresários para construir restaurantes, bancos e serviços em vez de recuperar os jardins lá existentes. 
 
Os projetos de condomínios expulsaram ou deslocaram pessoas dessas áreas para outras pouco acessíveis. Até hoje na periferia, vivem populações ainda com uma vida rural. Na capital do país, Maputo, o projeto da ponte Maputo-Katembe retirou da parte urbanizada da cidade muitas famílias pobres, que foram colocadas em espaços mais distantes da zona urbana, ficando sem acesso a água, energia, transporte, mercados e escola. 
 
São muitos os casos de pessoas afastadas por esses projetos. Em Moatise – Tete, o projeto da Vale de exploração de carvão mineral gerou e ainda gera muitos problemas ao criar novas terras para os habitantes. 
 
A população é realocada para um espaço onde ficam sem escola, sem amigos, sem serviços. Por isso, muitas pessoas continuam voltando para a zona urbana, mas vivendo em espaços bem pequenos. Não há uma distribuição de terra urbana de forma organizada. 
 
 
 
AM - O consumo de terra em países com economias em desenvolvimento no Sul Global aumentou na última década. Você já observou esse fenômeno na distribuição do espaço urbano em seu país/cidade? Existe um novo padrão para a distribuição de terras urbanas que não apenas privilegia a elite local, mas também tem implicações para o acesso de terras por pessoas de outros países (ricos ou pobres)? 
 
HN - No meu país já aumentou, de fato. Nós temos observado esse fenômeno de distribuição do espaço urbano, como uma distribuição desigual. A terra é distribuída para  pessoas que têm capacidade financeira. É muito difícil você ver a terra ser distribuída para gente pobre. Isso tem a ver com clientelismo, corrupção, e essas terras são distribuídas de forma desigual. Esse é um movimento, é um fenômeno muito frequente hoje e cria brigas nas grandes cidades, nos grandes centros urbanos do meu país. Há uma distribuição de terras para pessoas da elite, inclusive estrangeiros. E o pobre não tem acesso a essas parcelas. Nós chamamos de parcelas, os loteamentos. 
 
Então, na questão que você fala sobre se existe um novo padrão sobre a distribuição de terra urbana que não apenas privilegia elite local, mas também tem implicações para o acesso de terras por pessoas de outros países? A resposta é sim. Meu país recebe muito nigeriano, muito somali (gente da Somália). Recebe muita gente do Congo e refugiados. Esse é um novo padrão para a distribuição de terras. Então, esses estrangeiros, eles geralmente adquirem essa terra por via de dinheiro, pagando. Eles pagam porque eles têm. Muitos têm comércio, têm um poder aquisitivo e ficam comprando a terra, tendo acesso a ela de um jeito informal. Esse processo tem tido muitas implicações na construção de habitar, no uso da terra, porque esses espaços as vezes, de habitação são transformados em armazéns, em sítios impróprios em meio a população. As pessoas fazem o que querem, não há uma organização rígida desse espaço urbano, do que vai se construir lá. 
 
 
AM - O direito à cidade, e o direito à posse formal da terra são essenciais para o desenvolvimento econômico, social e político das pessoas que vivem em situações vulneráveis, especialmente as mulheres. Segundo a GLTN, a posse legal de terra atinge apenas 30% das áreas habitadas nos países em desenvolvimento. Desse total, apenas 3% das mulheres possuem documentos de registro de propriedades. Existem políticas urbanas específicas em seu país que garantam o direito à posse de terra para as mulheres, especialmente as que vivem em assentamentos informais ou favelas? 
 
HN - O direito à cidade é um conceito; é o direito humano mais negligenciado. David Harvey já diz isso no seu livro Direito à Cidade. Se nos países desenvolvidos ele já é negligenciado, imagine nos países do Sul Global. O direito à cidade não é um discurso presente em Moçambique. Nem os intelectuais falam disso, porque não existem movimentos que lutem pela questão urbana. Existem ONG’s que falam de terra, mas não de direito à cidade.
 
Eu desconheço que exista algo específico para mulheres. Em Moçambique temos uma sociedade patriarcal, onde o homem tem poder. O homem é quem decide quando construir uma casa. A mulher quase não tem acesso à terra. O discurso de empoderamento da mulher é recente e ele não é efetivado em Moçambique, como pode parecer. 
 
Existe a lei de Direito do Uso e Aproveitamento da Terra, que é conferido às pessoas singulares ou coletivas tendo em conta o seu fim social. As pessoas pedem um documento chamado DUAT. As mulheres podem ter um DUAT, mas se for casada, é o homem que vai ter o registro da posse de terra. O pedido do DUAT faz-se junto aos serviços de cadastro, da Província (ou Estado) onde se localiza o terreno pretendido pela mulher se for o caso.  
 
Conheço um caso, de um casal em que a mulher teve o registro de uso da terra em seu nome, mas ela nas brigas dizia que a casa (construída por eles) era dela, já que o registro estava em seu nome. Isso representava uma humilhação ao homem e levou à separação. Para evitar tais casos, o homem sempre busca registrar a terra em seu nome.
 
 
 
AM - A desigualdade na distribuição da terra urbana em metrópoles do Sul global cria formas específicas de organizar o espaço e as moradias em áreas de pobreza, densamente povoadas. Como se vivencia a passagem do COVID-19 nestes espaços na sua cidade ou na sua comunidade?
 
HN - Nós sabemos que a desigualdade na distribuição da terra urbana aglomerou as pessoas em espaços bem confinados, e isso é visível nas favelas. Por exemplo, na capital Maputo, há um bairro famoso, a Mafalala, onde mais de 15 mil pessoas vivem em barracos, em lotes de 20x20. Este espaço urbano, durante o dia, serve para a mobilidade. Durante a noite, ele é cercado, porque passa a ser um dormitório. Aí você pensa: como é que essa gente vai fazer um confinamento em casa de 30 dias? 
 
Isso mostra como a desigualdade na distribuição do espaço tem um impacto extremamente negativo sobre estes grupos. Os municípios têm o Plano de Estrutura Urbana (PEU), uma espécie de Plano Diretor para a organização espacial da totalidade do território do município. O PEU corresponde a uma visão do desenvolvimento da cidade, válida por 10 anos. Ele pode servir para regular o desenvolvimento do município, tendo em conta a ocupação atual e as infraestruturas sociais existentes. Esse documento é bonito formalmente, mas na prática não existe quando olhamos o caos nas cidades, os absurdos crescentes na Mafalala e outras nas periferias.
 
Henrique Norte
Doutorando em Desenvolvimento Urbano na UFPE. Professor da Universidade Católica de Moçambique e Coordenador do Registro Acadêmico da Faculdade de Educação e Comunicação em Nampula, no período entre 2010-2016. Autor da tese em curso: Governança Democrática em Moçambique: conteúdos a partir da gestão do município de Nampula e de artigo sobre ativismo democrático. Investigador no IEAF-UFPE, colaborador do NUGEPP.

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