Palafitas do Bairro do São Raimundo, 2009. Foto: Roberto Fontes de Souza
Para refletir sobre as diferentes desigualdades nos espaços urbanos, a Land Portal Foundation inicia uma série de entrevistas realizadas com acadêmicos/acadêmicas e defensores/defensoras de direitos humanos e territoriais. As entrevistas oferecem retratos de como esta distribuição desigual impacta as populações mais vulneráveis durante a pandemia do COVID-19.
O entrevistado de hoje é o pesquisador brasileiro Fabrício Martins, Formado em Direito na Universidade Federal do Amazonas (2009).
Vista aérea da "Cidade Flutuante", 1960. Manaus, Amazonas. Fonte: Michiles (2005)
AM -Nos países do Sul Global, historicamente o acesso formal à propriedade e a posse de terra estavam mais frequentemente relacionados ao acesso ao poder e privilégios. Existe, na sua cidade, uma clara divisão da terra em função da raça/etnia e classe social? Como esta divisão foi estruturada historicamente e como ela é hoje?
FM - Claramente! Há dois fatores ligados à propriedade da terra que são reveladores dessas divisões em Manaus: o acesso ao registro de propriedade (propriedade formal da terra) e o acesso à terra urbanizada. Manaus possui um padrão de expansão e planejamento territorial profundamente impactado por seus ciclos econômicos.
Palafitas próximas ao Igarapé do Educandos. Fonte: Marcel Gautherot, 1960.
AM - Segundo dados da ONU-Habitat, a população que vive em favelas no mundo cresce em torno de 25 milhões de pessoas por ano, registrando as maiores taxas de urbanização nos países mais pobres. Os projetos urbanos têm contribuído para expulsão e deslocamento de populações que vivem em pobreza na sua cidade? Como esses tipos de despejo transformaram os padrões de distribuição de terras urbanas em sua cidade na última década?
FM - Dentre os projetos urbanos de maior escala e que causaram uma boa dose de deslocamentos estão o Prosamim (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus) , de responsabilidade do governo estadual, e o Prourb (Programa de Desenvolvimento Urbano e Inclusão Socioambiental de Manaus), de responsabilidade do governo municipal. Em resumos, esses programas buscam retirar moradias construídas às margens dos igarapés, em terrenos alagadiços ou encostas e que não possuem condições de habitabilidade, além de dotar as imediações de saneamento básico. Está em seus objetivos também a reconversão das margens de igarapés em novos parques e/ou vias urbanas para automóveis. Apesar de enumerado como desafio desses programas o reassentamento em locais próximos do local de vivência, não raro é ofertado como solução mais prática a realocação dos moradores em alguns dos novos conjuntos habitacionais, construídos nos limites da cidade (Conjunto Cidadão, Residencial Viver Melhor, etc.).
Moradoras da Cidade Flutuante, Manaus. Fonte: Marcel Gautherot, 1950.
Demolições em área de intervenção do projeto Prosamim. Manaus, 2019. Foto: Tiago Correa/UGPE
AM - O consumo de terra em países com economias em desenvolvimento no Sul Global aumentou na última década. Você já observou esse fenômeno na distribuição do espaço urbano em seu país/cidade? Existe um novo padrão para a distribuição de terras urbanas que não apenas privilegia a elite local, mas também tem implicações nas terras acessadas por pessoas de outros países (ricos ou pobres)?
FM - Manaus é a segunda capital no Brasil com maior percentual de “aglomerados subnormais”, segundo o IBGE. Isso corresponde a 53,3% de seus domicílios. Nas últimas décadas, o modelo de condomínios fechados de residências ou de torres residenciais ajudou a embaralhar ainda mais o tecido urbano. Essa forma de construir “democratizou-se”, de forma que atende às elites, mas também já foi adaptado para empreendimentos direcionados à classe média baixa, pelo Minha Casa, Minha Vida. Quem perde a olhos vistos é a cidade, que vê reduzido os espaços de circulação e convivência sem muros.
Dona Maria das Dores, 63, na frente da casa de palafita onde vive com sua família. Bairro Educandos, Manaus, 2020. Foto: Bruno Kelly/Folhapress.
AM - O direito a cidade, e o direito a posse formal da terra são essenciais para o desenvolvimento econômico, social e político daspessoas que vivem em situações vulneráveis, especialmente as mulheres. Segundo a GLTN, a posse legal de terra atinge apenas 30% das áreas habitadas nos países em desenvolvimento. Desse total, apenas 3% das mulheres possuem documentos de registro de propriedades. Existem políticas urbanas específicas em seu país que garantam o direito à posse de terra para as mulheres, especialmente as que vivem em assentamentos informais ou favelas?
FM - Como havia dito lá atrás, sem o acesso ao registro formal da propriedade, os privilégios advindos da financerização da posse da terra, eram negados. Há a posse, porém não há acesso a empréstimos ou hipotecas, de forma que o mercado imobiliário manauara é profundamente afetado pelo “subdesenvolvimento” de sua estrutura fundiária. As administrações apostam há algumas décadas em extensos processos de regularização fundiária, sempre apostando na fórmula do título individual de propriedade. Uma das poucas restrições é de caráter temporal: o recebedor não pode negociar a propriedade por 10 anos.
Família em bairro Educandos em Manaus, 2020. Foto: Bruno Kelly/Folhapress
AM - A desigualdade na distribuição da terra urbana em metrópoles do sul global cria formas específicas na organização do espaço e moradias em áreas de pobreza densamente povoadas. Como se vivencia a passagem do COVID-19 nestes espaços na sua cidade ou na sua comunidade?
FM - Terrível! O governo federal está fazendo pouco para controlar a pandemia e, quando faz, é para atrapalhar os outros entes públicos e da sociedade. Manaus é o local com maior número de infecções e de mortes por habitante no Brasil. O sistema de saúde colapsou em abril e o número de sepultamentos diários – termômetro mais fiel da extensão da pandemia – quase triplicou. O normal da cidade são entre 25 a 30 sepultamentos diários. Esse número chegou a 140 em 14/04. Até o dia 26/05/2020, oficialmente há 1.248 óbitos confirmados. Porém, como há grave subnotificação, especula-se que haja até o triplo de mortes.