Indígenas debatem questões como violência, igualdade de direitos e hipersexualização. Elas afirmam que a Lei Maria da Penha não contempla suas especificidades
RIO - As mulheres estão na linha de frente da luta do movimento indígena e têm ganhado visibilidade e espaço como lideranças. Em 2018, 30 anos após a promulgação da Constituição Federal (1988), a primeira indígena foi eleita para representar o estado de Roraima no Congresso Nacional, a deputada Joênia Wapichana (Rede), e a líder indígena Sonia Guajajara concorreu como vice-presidente na chapa do candidato Guilherme Boulos (PSOL). Mas, apesar disso, é possível falar em um feminismo indígena? Quais são as suas reivindicações? Perguntamos a mulheres de diversas etnias quais são as pautas prioritárias na luta por direitos e igualdade.
Potyra Tê Tupinambá
Potyra Tê Tupinambá é formada em direito e atua em defesa dos direitos dos povos e das mulheres indígenas Foto: Acervo pessoal
"As feministas se unem e se apoiam, mas o indígena tem um olhar diferenciado que, talvez, só convivendo ou sendo indígena para entender. Ele não é sozinho, tem muitos atrás dele. Então, esse pertencimento e essa força fazem com que eu não me identifique com o feminismo.
Muitas vezes, as mulheres nas comunidades indígenas têm voz. As nossas lutas são tantas e são grandes. Primeiro, para existir, que é resistência. Depois, a gente briga por educação, saúde e demarcação do território. São tantas as lutas que a questão do direito da mulher fica para último plano. Se dentro da comunidade não tiver uma mulher com afinidade com o tema, ele vai sendo esquecido. Acho que a pauta principal é pensar espaços para a discussão das questões ligadas à mulher.
Uma segunda pauta seria a Lei Maria da Penha. Ela não nos atende. Sofremos tanto, lutamos contra esse sistema e vamos entregar um parente nosso a ele? A polícia não é nossa amiga, nós temos medo de quem incrimina as nossas lideranças. Então tentamos, enquanto movimento de mulheres, criar mecanismos internos dentro das comunidades para buscar soluções sem precisar acessar o sistema que nos oprime.
Quando há uma situação de violência na comunidade, a gente grita, tenta acolher aquela mulher, bota o agressor para correr e, depois, fica de sentinela na porta da casa. É claro que há situações que precisam ser levadas à delegacia. Eu já levei mulheres à delegacia e, mesmo com nível superior e a carteira da OAB na mão, não me senti à vontade dentro da delegacia da mulher de Ilhéus, onde fui atendida por um homem. Imagina uma parente minha, que já está fragilizada, já sofre preconceito por ser indígena, chegar a uma delegacia dessas? É importante desenvolver grupos de apoio para as mulheres em situação de violência. E, além disso, fortalecê-las para que impulsionem o movimento de enfrentamento à violência nas aldeias.
São muitos os direitos negados às indígenas. Temos nossa parteira tradicional e, quando o parto não pode ser realizado dentro da comunidade, ela não pode acompanhar o parto no hospital. Muitas mulheres sofrem violência obstétrica, então tentamos fortalecê-las para que não aceitem este tipo de situação.
Eu acho que não existe um feminismo só. A mulher que mora na cidade está em um contexto diferente do nosso, que vivemos na aldeia. Assim como o nosso contexto é diferente daquele das indígenas que vivem no contexto urbano. Então, acho que a gente tem que falar de vários feminismos. Cada povo é diferente. Não podemos dizer que indígena é tudo igual.
Eu sou do povo Tupinambá, em que a mulher tem um papel muito importante dentro da nossa sociedade. Somos um povo matriarcal, a nossa maior liderança é uma mulher. Nesse sistema, toda família tem uma matriarca, que é a anciã, e as coisas são resolvidas com aval dessa mulher. O meu povo, Tupinambá de Olivença, tem uma cacique mulher."
Potyra Tê Tupinambá é advogada e gestora executiva da Ong Thydewá.
Laís dos Santos
Laís dos Santos estuda Ciências Sociais na USP e é da etnia Maxakali Foto: Acervo Pessoal
"Eu não me identifico como feminista indígena. O movimento é de luta das mulheres indígenas. O feminismo não contempla as nossas pautas, dificilmente somos colocadas em debate. Nossa luta pelas mulheres indígenas é bem estabelecida. Acho que teria que ocorrer uma descolonização e ressignificação do feminismo muito grande para atrair os olhos em larga escala para nós.
A nossa principal pauta é a demarcação de terras. Não só das mulheres indígenas, mas do movimento indígena. Se não temos nosso território, não temos nada.
Além disso, tem a questão da violência contra a mulher indígena e de como isso se atrela ao racismo por causa da hipersexualização e do estereótipo. O estupro das indígenas é uma forma de dominação do não indígena, uma forma de deslegitimar, de desestruturar e desequilibrar toda a aldeia. Não é só uma violência física e psicológica, é uma forma de violência racial, que tem um caráter de superioridade do homem branco diante dos povos indígenas.
Em relação à violência doméstica, a gente destaca como a Lei Maria da Penha não elabora um diálogo com as nossas especificidades. É difícil contemplar e dialogar com nossos contextos dentro das aldeias. Hoje, há cartilhas sobre a Lei Maria da Penha traduzidas para a língua materna dos povos porque, além de não contemplar as nossas especificidades, ela não chegava às aldeias porque não havia tradução. E, dentro da aplicação da lei, tem a questão da discussão sobre respeitar a organização social do povo, de respeitar nossa autonomia.
A mortalidade infantil também é uma pauta bem urgente, porque as crianças indígenas são as principais vítimas. Tem também a questão das mulheres indígenas encarceradas. É muito desrespeito sobre quem nós somos e sobre os nossos costumes. As mulheres indígenas encarceradas são invisíveis.
O machismo do não indígena foi imposto e, por vezes, naturalizado dentro das nossas culturas. Então, colocamos a questão do protagonismo da mulher indígena na luta, dentro da aldeia, e fazemos um trabalho de conscientização de que nós não somos inferiores, que somos iguais e temos todos os direitos de estar na linha de frente da luta. Tanto que estamos."
Laís dos Santos é da etnia Maxakali (MG), estudante de Ciências Sociais na USP.
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